quarta-feira, 24 de outubro de 2012

COCAR DE BURRO EM VOCÊS

"Esse negócio de suicídio pode acontecer com um índio ou outro que teve acesso a Byron e Goethe. Jamais, porém, se transformará em uma manobra de massa. Primeiro, porque índio nunca se lixou pra cultura. Quem disse ao índio o que é cultura foi o homem branco. (...) E os índios, que só gostavam de cachaça e quinquilharia, nunca se animaram muito com ideias de branco. "


Um bando de índios do Mato Grosso do Sul decidiu realizar uma gloriosa sessão de suicídio em massa. Parece que estão revoltados com uma ordem de despejo da Justiça Federal, que estaria favorecendo interesses do agronegócio. Quem espalhou isso foi o jornalista Bob Fernandes, do Terra. Não costumo dar crédito a quase nada do que Bob Fernandes diz. Mas uma das suas queixas estava coberta de razão: ninguém da grande imprensa deu a mínima para o assunto. Não há nada na Folha. Não há nada no Globo. Não há nada no Estadão. Não há nada no Correio Braziliense. Não há nada no UOL. Não há nada no IG. Quando algo não sai na grande imprensa, é porque deve ser importante. O que atenta contra a relevância do assunto é ter saído em Bob Fernandes. E em alguns sites sergipanos. Para piorar, o suicídio em massa dos índios ganhou compartilhamento em massa nas redes sociais.

Na verdade, o "fato" não tem nada de importante. Ele é, com muito esforço, só curioso. Curioso porque o primeiro lugar a desmentir a menor possibilidade de suicídio em massa é a “cartinha-testamento” que teria sido deixada pelos índios. A cartinha é assinada pela aldeia. Pelo tom panfletário, não deve ter sido escrita pela pena semianalfabeta de algum “nativo”, mas pela pena gramsciana de algum espertinho com ares de assessor de imprensa da diversidade étnica. Lá, há apenas abuso de retórica antropológica e chavões para fortalecer a ligação do índio com a terra. É mais semiótica que gilete nos pulsos. 

Como o pessoal das redes sociais é bom em várias coisas, menos em interpretação textual, espalha-se por aí que o trecho “nós já vamos e queremos ser mortos e enterrados junto aos nossos antepassados” quer dizer que há um bando de gente querendo se matar. Ou que o trecho “comemos comida uma vez por dia” quer dizer que eles se sacrificarão. No mínimo, as belas índias sul mato-grossenses ficarão ainda mais esbeltas.

O segundo lugar a desmentir a menor possibilidade de suicídio em massa foi o próprio site da Funai. Isso quatro dias antes dos esclarecimentos que o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) foi obrigado a fazer. Em uma espécie de nota sobre os últimos incidentes no Mato Grosso do Sul, os indigenistas estatais dizem que “de acordo com lideranças indígenas ouvidas pela Coordenação Regional da Funai em Ponta Porã, não há intenção de suicídio, conforme anunciado pela imprensa. O que há é a determinação de não se deixar o local que consideram sua terra tradicional”. 

Eu sei, o site da Funai não é coisa em que se pode confiar. A página principal estampa uma matéria sobre as comemorações dos 20 anos da reserva “ianomâmi”, uma tribo que, segundo levantamentos militares, foi criada pela imprensa. Mas a pouca credibilidade do site da Funai é suficiente para desmentir qualquer coisa de Bob Fernandes. Ou de sites sergipanos. Ou de redes sociais.

A questão do suicídio em massa é apenas a mais ridícula. A outra é a ausência absoluta do outro lado. Até o momento, nenhum dos sites e blogs engajadinhos que disponibilizaram apressadamente o armagedon indigenista de Bob Fernandes procurou saber o que a Justiça Federal e os malvados fazendeiros têm a dizer de tudo isso. Tem fala de índia que não conseguia emendar um frase na outra. Mas nada do fazendeiro. Tem fala de índio com sotaque de São Carlos. Mas nada do jagunço assassino. Tem fala de índio que parece ter memorizado mal o que disseram pra ele reproduzir. Mas nada do juiz. Eles certamente existem. Eles certamente estão por aí. Mas nem em “Pocahontas” o público foi privado das opiniões do explorador. Bob Fernandes e seus fãs, por sua vez, resolveram escondê-las no mesmo lugar em que está a verdade sobre os ianomâmis.

Esse negócio de suicídio pode acontecer com um índio ou outro que teve acesso a Byron e Goethe. Jamais, porém, se transformará em uma manobra de massa. Primeiro, porque índio nunca se lixou pra cultura. Quem disse ao índio o que é cultura foi o homem branco. Quem disse ao índio que ele deveria lutar por ela foi o homem branco. Quem disse ao índio o que era reserva foi o homem branco. E os índios, que só gostavam de cachaça e quinquilharia, nunca se animaram muito com ideias de branco. 

A ideia de sacrifício em massa como ferramenta de pressão política não tem nada a ver com pessoas que, mesmo catequizadas e barbaramente escolarizadas, não sabem diferenciar plural de singular. Há gente mais perversa e temente à justiça - especificamente a federal - por trás disso aí. Gente que pode não conseguir garantir a terra dos “nativos” com sotaque de São Carlos. Mas que conseguiu, desde já, garantir um cocar de burro em cada um que deu crédito a esse furdunço.

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